Hoje mais uma música…
É a história de um menino, que foi aprendendo vivendo …
É grande, eu sei, mas se tiverem tempo leiam e depois ouçam a música…
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O meu pai diz muitas vezes:
O inferno é pessoal.
Concordo plenamente, mas acrescento:
Também o céu, também o céu…
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truz, truz...
- Quem é? - Perguntavas tu tia Palmira
- Sou eu - Respondia
- Eu quem? - Perguntavas tu já em tom de brincadeira, só para me ouvir falar
- Eu palmida! - Dizia chateado
- E o que queres? - Dizias-me abrindo a porta
- Quero um buguçado.
- Já acabaram - Dizias com uma mão atrás das costas
- Já?
- Já, mas guardei este para ti - Enquanto me estendias a mão
- O tio Manel já acodou? - perguntava eu, deliciando-me com o caramelo…
Vinha da escola, e todos os dias a meio do caminho ali estavas tu, sentado à minha espera, negrito, o gato da minha avó. Tirava um pedaço de pão do bolso que guardava da escola e dava-to. Dali até casa caminhavas sempre comigo, acompanhando-me... Nunca ninguém percebeu como é que o negrito sabia a que horas eu vinha da escola, mas todos os dias à mesma hora ali estava ele, sentado à minha espera...
Foi muito triste o dia em que não estavas à minha espera, devias estar distraído, pensei eu... mas à medida que os dias foram passando, fui-me apercebendo... tinhas desaparecido, nunca mais te vi...
À hora do lanche a minha mãe dava-me um iogurte, mas não me dava colher. Não precisava.
Corria para tua casa avó, e trocava o meu iogurte do supermercado, por um feito por ti, numa panela com água quente embrulhada em cobertores... Atulhava-o de açúcar amarelo e deliciava-me. Lembras-te?
Lembro-me quando chegava que agarravas em mim e dizias: "Dlim dlão, cabeça de cão, orelhas de burro, não tem coração", enquanto pegavas em mim ao colo e andavas comigo às voltas... Outa vez - dizia eu no fim.
Lembro-me de me convenceres uma vez a ir à missa contigo, disse à minha mãe: "Vou à missa com a avó", "Está bem", respondeu ela. Não gostei, os padres não falam para as crianças, e tu ficas-te triste por eu não gostar.
Se fosse hoje ia todos os dias contigo à missa avó, só para estar contigo...
O quintal do meu avô era mágico, era a vida dele. Demorava eternidades a fazer qualquer coisa, mas tudo ficava impecável, até os regos das batatas eram verdadeiras obras de arte, lisos como se fossem de cimento.
Muitos trevos de 4 folhas apanhei eu no teu quintal avô.
Lembro-me de uma vez nascer um girassol com imensas flores, mais parecia uma árvore, coisa que toda a gente dizia que não podia acontecer, mas no teu quintal aconteceu...
Tinhas um olhar vazio, de quem já tudo viu.
Não tinhas muita paciência para mim, mas não faz mal, sempre gostei de ti assim.
Contavam histórias de quando tu eras novo e que tinhas muita força, de como tu e o tio Augusto pegavam num pipo de vinho sozinhos, ou de como tu carregas-te a sacos de batas que trazias do rio, a areia que construiu a casa da minha avó materna.
Os iogurtes eram feitos na embalagem dos teus medicamentos avô, medicamento que tinhas que tomar todos os dias antes das refeições. Pois não tinhas estômago, um cancro havia-to levado anos antes. Nunca o soubeste, pensavas que só te tinham tirado metade. Mas conheciam-te bem e foi melhor assim, pois os médicos davam-te apenas 1 ou 2 anos de vida e tu viveste mais 15...
- O tio Manel já acodou? - perguntei eu
- Já, acordou mesmo agora - respondia a minha tia Palmira
E eu levantava-me contigo, e fazia tudo como tu, até me arranjas-te uma lâmina para eu fazer a barba contigo (sem lâmina claro).
Tu tinhas uma paciência interminável, e um jeito para as crianças sem igual.
Contigo muito aprendi.
Lembro-me de me ensinares a conduzir, tinha eu 3 ou 4 anos e tu empurravas o teu 127 pela janela e eu ajudava-te a virar o volante, com o passar dos anos comecei a ter força para o virar sozinho!
Lembro-me que sempre conseguis-te compor tudo, até a bicicleta que me tinhas feito dum quadro que encontras-te compuseste, depois de eu ter partido o quadro ao meio. Um ferro daqui um arame dali, e lá durou mais uns tempos.
Lembro-me como eras forte, o homem mais forte do mundo pensava eu.
Ia para a praia contigo e com a tia e tu entravas no mar e nadavas para longe, eu a tia ficávamos a ver a tua cabeça a desaparecer no horizonte... Passado muito tempo dizia a minha tia, já aí vem, e a tua cabeça começava lentamente a aproximar-se da costa.
Lembro-me numa tempestade em que estavas a tentar reforçar o telheiro, este te cair em cima da cabeça, a minha mãe pensou o pior, mas tu saís-te lá de baixo apenas com um galo. Que até cantava dizias tu. Eras indestrutível.
Lembro-me uma vez na escola, de a professora mostrar um mapa mundo e eu perguntar se alguém já tinha atravessado a nado até à América que era muito longe... Disparate! Respondeu a professora. O meu tio Manel consegue pensei eu...
Lembro-me como se fosse hoje, era sábado, e eu estava a passar uns dias em tua casa avô, como fazia todos os verões, ao chegar a casa depois de passar um dia na praia com os meus amigos, reparei que estava lá toda a gente. Devem ter vindo visitar-te avô, pensei, pois estavas internado à dois dias, de uma trombose. Mas não. Quando cheguei o meu pai aproximou-se de mim e perguntou:
- Divertiste-te com os teus amigos.
- Porquê é que está cá toda a gente? – Perguntei eu estranhando.
- O teu avô morreu hoje de manhã. – Respondeu.
- Porque não me disseram nada?
- O que podias fazer?
- Nada, mas…
- Divertiste-te hoje com os teus amigos? – Interrompendo-me.
- Diverti, mas…
- É só isso que importa. – Respondeu-me enquanto me dava um beijo na cara.
Lembro-me de ter vontade de chorar e não conseguir.
Lembro-me de te ouvir dizer avó: - E agora que vai ser da minha vida?
Nesse dia toda a minha perspectiva da morte mudou, e por consequente a da vida.
No dia seguinte fui pela segunda vez a uma missa contigo avó.
Estavas em minha casa avó, sentiste-te mal e foste para o hospital.
Pedra nos rins disseram os médicos, não é grave.
Dois dias depois deixaste-nos…
Os médicos disseram que não aguentas-te o internamento…
Mas toda a gente sabe que morreste de saudade. Havia dois anos desde a morte do avô. E nunca mais tinhas sido a mesma.
A vida dele era cuidar do quintal, e a tua vida era cuidar dele…
E avó, fui à tua missa, porque isso te fazia feliz…
Nunca tinhas estado doente um único dia na tua vida tio Manel…
Uma doença bastou, a primeira e última.
Fui-te visitar a casa, a tia disse que estavas como de costume cá fora a ajeitar qualquer coisa. Desmaias-te, quando recuperaste os sentidos voltas-te para dentro e tornas-te a desmaiar… Depois de muito batalhar lá te convenceram a ir a um hospital…
Tiveram que te fazer análises a tudo, grupo sanguíneo, alergia à penicilina, etc… como a uma criança…
Tumor no cérebro inoperável, foi o que bastou para te derrubar…
Voltas-te para casa mas já sem a vida que sempre carregas-te em ti…
Lembro-me de te ir visitar.
Não me reconheceste.
Lembro-me de ver a tia chorar, e tentar de algum modo consolá-la, como muitas vezes ela me havia consolado a mim.
Lembro-me de te colocar uma mão em cima da tua que permanecia quieta na tua barriga, e com a outra dei-te de comer, como se dá a uma criança, que eu outrora fora.
E pela primeira vez apercebi-me, também tu em tempos foras uma criança.
Quis pegar no teu caixão e carregar-te uma última vez… Como muitas vezes carregaste comigo…
E pela primeira vez fui a um enterro.
De ti avô, herdei a força e a perfeição que ponho em tudo que faço, do mesmo modo que punhas no teu quintal…
De ti avó, herdei a calma e a paciência, devagar se vai ao longe, sempre dizias…
De ti tio Manel, herdei a habilidade de concertar coisas, e o amor pelas crianças, hoje compreendo que não há nada mais belo que a pureza de uma criança…
De ti tia Palmira, não herdei nada, pois ainda cá estás…
Já não te vou visitar tantas vezes como costumava. Não tenho tempo, justifico-me para mim mesmo, a desculpa da moda, mas não é verdade, pois tempo para ti, não me falta…
Mas prometo que te vou visitar em breve.
Vou, com uma lágrima no canto do coração, tocar à tua campainha. E tu vais, porque há coisas que nunca mudam, dizer:
- Quem é?
- Sou eu.
11 comentários:
Uma delícia...
Sabes o que acho da tua música. =) Derrete-nos! Agora as fotos e o teu texto estão deliciosamente sensíveis!
Amei! Mesmo! =)Sim, vi o mega girassol na última foto! ;)
Muito bonito, wolf!
Estou aqui toda emocionada com uma lagrimita no canto do olho e peço-te que vás visitar a tia Palmira em breve... Porque há pessoas que merecem uma visita!
Bom fim de semana e parabéns pelo excelente post!
Ah... e tenho uma coisita para ti lá na minha caixinha! Quando puderes fazer-me uma visita...
Lindo... estou a ver que não sou a única sentimentalona da blogoesfera... estima sempre a família - pode não ser a melhor, mas é única!
Um enooooorme beijinho!
Miguel!!!
Estás PROIBIDO de editares mais textos destes!!!
Porra, anda um gajo uma vida inteira a dar ares de macho, frio, calculista, para chegar aqui lêr o texto e ...não há lenço que aguente!!!
Tantos anos a constuir uma imagem e ....(brincadeirinha)
Fantástico, como sugestão só devias por como musica de fundo "Tenho uma lágrima no canto do olho"
abraço, e já agora
"O PC JÁ FUNCIONA!!!!!!!!!!!!!"
Queria dizer qualquer coisa ... mas acho que vou ler o texto outra vez ! Faço melhor...
Já disseste tanto!
Deixo-te um beijo.
Brilhante!!!
Miguel, não paras de me surpreender e eu gosto disso.
Grande Abraço para ti,
Obrigado a todos, agora sou eu que estou sem palavras...
wolfie: de quando em quando gosto de partir para posts em jeito de desafio, tipo challenge entre bloggers. Já o fiz e a ideia muda consoante o blogger desafiante. Apresentaram-me um hoje ( from I blog your pardon, cujo link tenho no Pieces )em que seria interessante ter mais bloggers a entrar.... pensei n' os pensamentos de um velho lobo ! Se estiveres nessa manda um mail para redjan@gmail.com e na volta explico-te o espirito da coisa & the rules of this one !!!
Só para dizer que já tenho foto! ENA! =) =)
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